terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A VIATURA DO ESTADO

(...) A porta da casa abriu-se e o capitão Branco, pálido de embaraço, dirigiu-se em passo lesto para o automóvel, cuja porta traseira havia sido aberta pelo solícito motorista. Uma salva de palmas reverberrou pela rua, acompanhada por assobios e vivas, como se o próprio presidente do Conselho ali estivesse de passagem. Amélia acompanhou o marido com a sua melhor fatiota de domingo e fez questão de entrar pela porta escancarada da viatura quando a mão do capitão a travou.
    "Onde vais?", admirou-se Mário Branco.
    "Ora", retorquiu ela, esboçando um trejeito de primeira-dama de Penafiel. "Tenho de ir à Pastelaria Brasil."
    "Agora?"
    "Pois claro! Se tens carro com chauffer, temos de usufruir dele, não é verdade?"
     O capitão respirou fundo, num esforço para ocultar o ar contrariado. Sentia os olhares dos filhos e da vizinhança pousados neles, um factor de inibição para que tomasse uma atitude mais severa. A verdade, porém, é que não podia deixar a coisa correr. Olhou para o motorista, que aguardava junto à porta do Ford que ambos entrassem, e indicou o volante.
    "Vai andando", ordenou. "Hoje vou a pé."
    "Sim, meu capitão!"
     O motorista fez continência e meteu-se no automóvel perante o olhar embasbacado de Amélia e a surpresa da multidão que se juntara para presenciar o grande acontecimento.
    "O que estás a fazer?", perguntou a mulher, sem entender o que acontecera. "Porque o mandaste embora?"
     O capitão deu-lhe o braço e puxou-a com suavidade, fazendo-lhe sinal de que o acompanhasse. Forçou um sorriso e começaram a descer a rua de braço dado, obrigando os mirones a abrir alas para os deixarem passar. O oficial aligeirou o passo, a compustura em primeiro lugar, e só quando se sentiu longe dos ouvidos indiscretos abriu a boca.
    "O carro que me entregaram é do estado e apenas se destina a funções do estado", murmurou sempre com um sorriso. Podia não ser escutado mas decerto observado. "Só eu posso andar nele e apenas quando estou de serviço. Se eu for ao clube dos oficiais jogar bilhar, tenho de ir a pé. Seria um abuso inaceitável usar esta viatura para fins pessoais, entendes?"
    "Mas a Pastelaria Brasil fica em caminho", argumentou Amélia. "O carro não consome nem mais um mililitro de gasolina se me levares contigo..."
    "O carro é só para deslocações de serviço."
    "Levas-me durante essa deslocação de serviço. Vais à sede da comissão e largas-me a meio. O estado não gasta nem mais um tostão só porque eu vou lá dentro."
    "Não é uma questão de gastar mais ou menos", devolveu o marido num tom quase pedagógico. "É uma questão de princípio. Trata-se de uma viatura oficial e destina-se exclusivamente a uso oficial. Qualquer outro uso não é uso, é abuso."
    "Mas toda a gente usa os carros oficiais para outras coisas, Mário. O presidente da câmara, por exemplo. Ainda no outro dia o vi na..."
    "Nós não somos toda a gente, Amélia", cortou o capitão. "Este país não se endireita se não houver pessoas que dêem o exemplo. A liderança exerce-se dando o exemplo."
    "Mas quem é que se importa com isso?", protestou Amélia erguendo um tudo-nada a voz. "Ninguém! Só tu! Toda a gente que tem carro do estado faz isso. Se tu fizeres, achas que alguém te condena?"
    "Não sei se alguém me condenará, mas sei que eu próprio me condenarei e isso chega-me."
    "Oh, que tolice!"
     A montra da Pastelaria Brasil cintilava já ao fundo da rua, reflectindo a luz límpida do Sol que se erguia sobre os telhados fronteiros. O capitão ajeitou o casaco e o chapéu antes de se voltar de novo para a mulher.
    "Podes dizer o que quiseres, mas o facto é que a viatura que me foi atribuída é do estado e só pode ser usada em funções de estado. A apropriação de meios do estado para fins privados tem nome e esse nome é corrupção. Isso eu não faço." (...)

Do livro "O Anjo Branco", de José Rodrigues dos Santos


NOTA:- Isto passou-se em Portugal, em plena ditadura, corria o ano de 1943.
  

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