sábado, 9 de junho de 2012

"Nação valente e imortal" - António Lobo Antunes

Crónica na Visão da primeira semana de Abril. (Boa demais para deixar passar sem partilhar)
Deixam de ser ministros e a sua vida é um horror, suportado em estóico
silêncio.
Veja-se, por exemplo, o senhor Mexia, o senhor Dias Loureiro, o senhor
Jorge Coelho,
coitados. Não há um único que não esteja na franja da miséria.   Um único.
Mais aqueles rapazes generosos, que, não sendo ministros, deram o
litro pelo País e
só por orgulho não estendem a mão à caridade.
O senhor Rui Pedro Soares, os senhores Penedos pai e filho, que isto da bondade
as vezes é hereditário, dúzias deles.
Tenham o sentido da realidade, portugueses, sejam gratos, sejam honestos,
reconheçam o que eles sofreram, o que sofrem. Uns sacrificados, uns Cristos,
que pecado feio, a ingratidão.
O senhor Vale e Azevedo, outro santo, bem o exprimiu em Londres.
O senhor Carlos Cruz, outro santo, bem o explicou em livros.
E nós, por pura maldade, teimamos em não entender.
Claro que há povos ainda piores do que o nosso: os islandeses, por exemplo,
que se atrevem a meter os beneméritos em tribunal.
Pelo menos nesse ponto, vá lá, sobra-nos um resto de humanidade, de respeito.
Um pozinho de consideração por almas eleitas, que Deus acolherá decerto, com
especial ternura, na amplidão imensa do Seu Seio. Já o estou a ver

- Senta-te aqui ao meu lado ó Loureiro
- Senta-te aqui ao meu lado ó Duarte Lima
- Senta-te aqui ao meu lado ó Azevedo que é o mínimo que se pode fazer
por esses
Padres Américos, pela nossa interminável lista de bem-aventurados, banqueiros,
coitadinhos, gestores que o céu lhes dê saúde e boa sorte e demais penitentes
de coração puro, espíritos de eleição, seguidores escrupulosos do Evangelho.
E com a bandeirinha nacional na lapela, os patriotas, e com a arraia miúda no
coração. E melhoram-nos obrigando-nos a sacrifícios purificadores,
aproximando-nos dos banquetes de bem-aventuranças da Eternidade.

As empresas fecham, os desempregados aumentam, os impostos crescem,
penhoram casas,
automóveis, o ar que respiramos e a maltosa incapaz de enxergar a capacidade
purificadora destas medidas. Reformas ridículas, ordenados mínimos irrisórios,
subsídios de cacaracá?  Talvez.  Mas passaremos sem dificuldade o buraco da
agulha enquanto os Loureiros todos abdicam, por amor ao próximo, de uma
Eternidade feliz. A transcendência deste acto dá-me vontade de ajoelhar à sua
frente. Dá-me vontade? Ajoelho à sua frente indigno de lhes desapertar as
correias dos sapatos.

Vale e Azevedo para os Jerónimos, já!
Loureiro para o Panteão já!
Jorge Coelho para o Mosteiro de Alcobaça, já!
Sócrates para a Torre de Belém, já! A Torre de Belém não, que é tão
feia. Para a Batalha.

Fora com o Soldado Desconhecido, o Gama, o Herculano, as criaturas de
pacotilha com que os
livros de História nos enganaram.

Que o Dia de Camões passe a chamar-se Dia de Armando Vara.
Haja sentido das proporções, haja espírito de medida, haja respeito.
Estátuas equestres para todos, veneração nacional.
Esta mania tacanha de perseguir o senhor Oliveira e Costa:  libertem-no.
Esta pouca vergonha contra os poucos que estão presos, os quase
nenhuns que estão presos como provou o senhor Vale e Azevedo, como provou o
senhor Carlos Cruz, hedionda perseguição pessoal com fins inconfessáveis.
Admitam-no. E voltem a pôr o senhor Dias Loureiro no Conselho de Estado, de
onde o obrigaram, por maldade e inveja, a sair.
Quero o senhor Mexia no Terreiro do Paço, no lugar D. José que, aliás,
era um pateta.
Quero outro mártir qualquer, tanto faz, no lugar do Marquês de Pombal,
esse tirano.
Acabem com a pouca vergonha dos Sindicatos.
Acabem com as manifestações, as greves, os protestos, por favor deixem
de pecar.
Como pedia o doutor João das Regras, olhai, olhai bem, mas vêde.
E tereis mais fominha e, em consequência, mais Paraíso.
Agradeçam este solzinho. Agradeçam a Linha Branca. Agradeçam a sopa e
a peçazita de fruta do jantar.
Abaixo o Bem-Estar.

Vocês falam em crise mas as actrizes das telenovelas continuam a
aumentar o peito: onde é
que está a crise, então? Não gostam de olhar aquelas generosas abundâncias que
uns violadores de sepulturas, com a alcunha de cirurgiões plásticos, vos
oferecem ao olhinho guloso? Não comem carne mas podem comer lábios da
grossura de bifes do lombo e transformar as caras das mulheres em
tenebrosas máscaras de
Carnaval.

Para isso já há dinheiro, não é? E vocês a queixarem-se sem vergonha,
e vocês cartazes,
cortejos, berros. Proíbam-se os lamentos injustos. Não se vendem
livros? Mentira.
O senhor Rodrigo dos Santos vende e, enquanto vender, o nível da nossa cultura
ultrapassa, sem dificuldade, a Academia Francesa. Que queremos? Temos peitos,
lábios, literatura e os ministros e os ex-ministros a tomarem conta disto.

Sinceramente, sejamos justos, a que mais se pode aspirar?
O resto são coisas insignificantes:
desemprego, preços a dispararem, não haver com que pagar ao médico e à
farmácia, ninharias.
Como é que ainda sobram criaturas com a desfaçatez de protestarem?
Da mesma forma que os processos importantes em tribunal a indignação
há-de, fatalmente, de prescrever. E, magrinhos, magrinhos mas com
peitos de litro e beijando-nos uns aos outros com os bifes das bocas seremos,
como é nossa obrigação, felizes.




in Revista Visão
05.04.2012













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