quinta-feira, 12 de julho de 2012

Santana Castilho dirige carta aberta a Nuno Crato
Senhor ministro:
Como sabe, uma carta aberta é um recurso retórico. Uso-o, agora que se
cumpre um ano sobre a sua tomada de posse, para lhe manifestar indignação
pelas opções erradas que vem tomando e fazem de si um simples predador do
futuro da escola pública. Se se sentir injustiçado com a argumentação que se
segue, tenha a coragem de marcar o contraditório, a que não me furto. Por
uma vez, saia do conforto dos seus indefectíveis, porque é pena que nenhuma
televisão o tenha confrontado, ainda, com alguém que lhe dissesse, na cara,
o que a verdade reclama.


Comecemos pelo programa de Governo a que pertence. Sob a epígrafe
“Confiança, Responsabilidade, Abertura”, garantia-nos que “… nada se fará
sem que se firme um pacto de confiança entre o Governo e os portugueses … “
e asseverava, logo de seguida, que desenvolveria connosco uma “relação
adulta” (página 3). E que outra relação, senão adulta, seria admissível? O
que se seguiu foi violento, mas esclarecedor. O homem que havia interrogado
o país sobre a continuidade de um primeiro-ministro que mentia, referindo-se
a Sócrates, rápido se revelou mais mentiroso que o antecessor. E o senhor
foi igualmente célere em esquecer tudo o que tinha afirmado enquanto crítico
do sistema. Não me refiro ao que escreveu e disse quando era membro da
Comissão Permanente do Conselho Nacional da UDP.
Falo daquilo que defendia no “Plano Inclinado”, pouco tempo antes de ser
ministro. Ambos, Passos Coelho e o senhor, rapidamente me reconduziram a
Torga, que parafraseio: não há entendimento possível entre nós; separa-nos
um fosso da largura da verdade; ouvir-vos é ouvir papagaios insinceros.

Para o Governo a que o senhor pertence, a Educação é uma inevitabilidade,
que não uma necessidade. Ao mesmo tempo que a OCDE nos arruma na cauda dos
países com maiores desigualdades sociais, lembrando-nos que só o
investimento precoce nas pessoas promove o desenvolvimento das sociedades,
Passos Coelho encarregou-o, e o senhor aceitou, de recuperar o horizonte de
Salazar e de a reduzir a uma lógica melhorada do aprender a ler, escrever e
contar. Sob a visão estreita de ambos, estamos hoje, em relação a ela, com a
mais baixa taxa de esforço do país em 38 anos de democracia.

O conflito insanável entre Crato crítico e Crato ministro foi eloquentemente
explicado no último domingo de Julho de 2011, no programa do seu amigo,
professor Marcelo. Sujeito a perguntas indigentes, o senhor só falou, sem
nada dizer, com uma excepção:
estabeleceu bem a diferença entre estar no Governo e estar de fora.
Quando se está no Governo, afirmou, “tem de se saber fazer as coisas”;
quando se está de fora, esclareceu, apresentam-se “críticas e sugestões,
independentemente da oportunidade”. Fiquei esclarecido e acedi ao seu
pedido, implícito, para arquivarmos o crítico. Mas é tempo de recordar
algumas coisas que tem sabido fazer e que relações adultas estabeleceu
connosco.

A sua pérola maior é o prolixo documento com que vai provocar a
desorganização do próximo ano lectivo, marcado pela obsessão de despedir
professores. Autocraticamente, o senhor aumentou o horário de trabalho dos
professores, redefinindo o que se entende por tempos lectivos; reduziu
brutalmente as horas disponíveis para gerir as escolas, efeito que será
ampliado pela loucura dos giga-agrupamentos; cortou o tempo, que já era
exíguo, para os professores exercerem as direcções das turmas; amputou um
tempo ao desporto escolar; e determinou que os docentes passem a poder
leccionar qualquer disciplina, de ciclos ou níveis diferentes,
independentemente do grupo de recrutamento, desde que exista “certificação
de idoneidade”, forma prosaica de dizer que vale tudo logo que os directores
alinhem.
Consegue dormir tranquilo, desalmado que se apresenta, perante um cenário de
despedimento de milhares de professores?

O despacho em apreço bolsa autonomia de cada artigo. Mas é uma autonomia
cínica, como todas as suas políticas. Uma autonomia decretada, envenenada
por normas, disposições, critérios e limites.
Uma autonomia centralizadora, reguladora, castradora, afinal tão ao jeito do
marxismo-leninismo em que o senhor debutou politicamente.
Poupe-nos ao disfarce de transferir para o director (que não é a escola),
competências blindadas por uma burocracia refinada, que dizia querer
implodir e que chega ao supino da cretinice com a fórmula com que passará à
imortalidade kafkiana: CT=K x CAP + EFI + T, em que K é um factor inerente
às características da escola, CAP um indicador da capacidade de gestão de
recursos humanos, EFI um indicador de eficácia educativa (pergunte-se ao
diabo ou ao Tiririca o que isso é) e T um parâmetro resultante do número de
turmas da escola ou agrupamento. Por menos, mentes sãs foram exiladas em
manicómios.

Senhor ministro, vai adiantada esta carta, mas a sua “reorganização
curricular” não passará por entre as minhas linhas como tem passado de
fininho pela bonomia da comunicação social. O rigor que apregoa mas não
pratica, teria imposto o único processo sério que todos conhecem:
primeiro ter-se-iam definido as metas de chegada para os diferentes ciclos
do sistema de ensino; depois, ter-se-ia desenhado a matriz das disciplinas
adequadas e os programas respectivos; e só no fim nos ocuparíamos das cargas
horárias que os cumprissem. O senhor inverteu levianamente o processo e
actuou como um sapateiro a quem obrigassem a decidir sobre currículo: fixou
as horas lectivas e anunciou que ia pensar nas metas, sem tocar nos
programas. Lamento a crueza mas o senhor, que sobranceiramente chamou
ocultas às ciências da educação, perdeu a face e virou bruxo no momento de
actuar: simplesmente achou.
O que a propósito disse foi vago e inaceitavelmente simplista. O que são
“disciplinas estruturantes” e por que são as que o senhor decretou e não
outras? Quais são os “conhecimentos fundamentais”? O que são o “ensino
moderno e exigente” ou a “redução do controlo central do sistema educativo”,
senão versões novas do “eduquês”, agora em dialecto “cratês”? Mas o seu fito
não escapa, naturalmente, aos que estão atentos: despedir e subtrair à
Educação para adicionar à banca.

Duas palavras, senhor ministro, sobre o Estatuto do Aluno. É preciso topete
para lhe acrescentar a Ética Escolar. Lembra-se da sua primeira medida,
visando alunos? Eu recordo-lha: foi abolir o prémio para os melhores,
instituído pelo Governo anterior. Quando o senhor revogou, já os factos que
obrigavam ao cumprimento do prometido se tinham verificado. O senhor podia
revogar para futuro. Mas não podia deixar de cumprir o que estava vencido.
Que aconteceu à ética quando retirou, na véspera de serem recebidos, os
prémios prometidos aos alunos? Que ética lhe permitiu que a solidariedade
fosse imposta por decreto e assente na espoliação? Que imagem da justiça e
do rigor terão retirado os alunos, os melhores e os seus colegas, do
comportamento de que os primeiros foram vítimas? Terão ou não sobeja razão
para não acreditarem nos que governam e para lamentarem a confiança que
dispensaram aos professores que, durante 12 anos, lhes ensinaram que a
primeira obrigação das pessoas sérias é honrar os compromissos assumidos?
Não é isso o que os senhores hoje invocam quando reverenciam Sua Santidade a
Troika? Da sua ética voltámos a dar nota quando obrigou jovens com
necessidades educativas especiais a sujeitarem-se a exames nacionais, em
circunstâncias que não respeitam o seu perfil de funcionalidade, com o
cinismo cauteloso de os retirar depois do tratamento estatístico dos
resultados. Ou quando, dias antes das inscrições nos exames do 12º ano,
mudou as respectivas regras, ferindo de morte a confiança que qualquer
estudante devia ter no Estado. Ou, ainda, quando, por mais acertada que
fosse a mudança, ela ocorreu a mais de meio do ano-lectivo (condições de
acesso ao ensino superior por parte de alunos do ensino recorrente).
Compreenderá que sorria ironicamente quando acrescenta a Ética Escolar a um
Estatuto do Aluno assente no castigo, forma populista de banir os sintomas
sem a mínima preocupação de identificar as causas. Reconheço, todavia, a sua
coerência neste campo: retirar os livros escolares a quem falta em excesso
ou multar quem não quer ir à escola e não tem dinheiro para pagar a multa,
fará tanto pela qualidade da Educação como dar mais meios às escolas que
tiverem melhores resultados e retirá-los às que exibam dificuldades.
Perdoar-me-á a franqueza, mas vejo-o como um relapso preguiçoso político,
que não sabe o que é uma escola nem procurou aprender algo útil neste ano de
funções.

* Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)






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