domingo, 30 de janeiro de 2011

Grito de alma

Armanda Zenhas| 2010-07-14
A minha profissão está a perder alma. A escola está a perder alma. Eu estou a perder
alma. Cada novo diploma legal (e são tantos) acrescenta mais um tanto de burocracia
à profissão, com o argumento do rigor.
Escolhi a minha profissão. Escolhi ser professora. E escolhi assim porque encontrei
alma nesta profissão, na relação com os alunos, na relação com as famílias e também
na relação com os outros professores. Olhar para cada criança ou jovem como um ser
único e estabelecer com ela(e) uma relação que vai para além do vocabulário e das
estruturas gramaticais do Inglês que ensino, mas que é fundamental para a sua
aprendizagem. Ser procurada pelos alunos, particularmente nos seus momentos maus,
nos seus problemas, relacionados ou não com a escola, quando se conquistou a
confiança deles. Ajudá-los a resolver os problemas quando é possível, ouvi-los, pelo
menos, quando mais não se pode fazer.
Estabelecer uma relação com as famílias como directora de turma. Conhecer, assim,
melhor, cada aluno, e conquistar a confiança e criar laços com os pais, fazendo com
que haja clima para analisar os problemas dos seus educandos e encontrar estratégias
de resolução em que a família, os alunos e os professores entrem, cada um de acordo
com as suas responsabilidades e o seu papel. Atendimentos, reuniões de pais e alunos,
projectos desenvolvidos para além do horário, da remuneração e do reconhecimento
de quem não as/os vive(u), nas horas de alma e com alma. Fazer de cada turma uma
família com alunos, mas também com pais e professores, em que a escola é, de facto,
uma segunda casa, não apenas nem sobretudo pela quantidade de tempo que se lá
passa, mas pela sua qualidade.
Ser professor é ter uma profissão eminentemente relacional, que se constrói na
vivência da relação. Não estou a esquecer-me da necessidade do conhecimento
científico do professor e da necessidade de ele saber trabalhar esse conhecimento do
ponto de vista pedagógico, para que os alunos possam aprender. Estou apenas e tãosó
a salientar a importância da dimensão humana e relacional do processo de ensinoaprendizagem
e, consequentemente, da profissão docente.
A minha profissão está a perder alma. A escola está a perder alma. Eu estou a perder
alma. Cada novo diploma legal (e são tantos) acrescenta mais um tanto de burocracia
à profissão, com o argumento do rigor. São fichas e papéis para tudo e... para nada:
para as faltas dos alunos, contadas das mais diversas formas e nos mais variados
Armanda Zenhas
Psicológica de Professores, pela Universidade do Minho. É licenciada em
Línguas e Literaturas Modernas, nas variantes de Estudos Portugueses e
Ingleses e de Estudos Ingleses e Alemães, e concluiu o curso do Magistério
Primário (Porto). É PQND do 3.º grupo da Escola EB 2,3 de Leça da Palmeira
e autora de livros na área da educação. É também mãe de dois filhos.
Mestre em Educação, área de especialização em Formação
documentos; para informar os pais sobre tudo e mais alguma coisa, com prazos
reduzidíssimos; para justificar cada negativa que se dá; para fazer planos de
recuperação de cada negativa que se dá; para tomar medidas disciplinares; para as
justificar; para...; para...; para... São reuniões atrás de reuniões para tratar de mais
burocracias, em que o tempo é sempre mais longo do que o previsto (mas não
remunerado) e os assuntos que verdadeiramente interessam, aqueles que têm alma, já
não têm tempo de ser abordados. Convencemos os pais dos alunos de que devem
passar tempo com os seus filhos, após a escola, e nela permanecemos nós, depois do
horário das aulas, em reuniões sem fim, com os filhos à espera, na ama, sozinhos em
casa, ou com alguém que não nós. Tudo isto, sem que tenha diminuído o número das
outras tarefas. Essas, aquelas em que eu encontro alma, vão perdendo espaço e valor.
Entra-se numa sala de professores e só se ouve: "Já não tenho tempo para preparar
aulas como gostava. Agora, reutilizo as coisas que fui fazendo ao longo dos anos.",
"Já não consigo tempo para ir às livrarias e nem sequer para ler.", "Não consigo nem
um bocadinho para pesquisar na net coisas novas.", "Não tenho tempo para a família
e nem para mim." E logo depois, também se ouve: "Não foi para isto que vim para
professor." Olha-se à volta e vêem-se colegas de profissão, um pouco mais velhos,
sempre dedicados ao trabalho, de corpo e alma, respeitados na escola e a ela fazendo
imensa falta, calculando o que perdem com uma reforma antecipada. Querem ir
embora enquanto a burocracia não lhes rói a alma e acabam por o fazer, de lágrimas
nos olhos, enquanto muitos outros já partiram mesmo.
Por mim, tenho vindo a procurar não perder a alma, aguentando o tal trabalho
relacional, invisível, não reconhecido nem remunerado, acumulando-o com o
obrigatório, cada vez mais burocrático. Também eu penso, digo e repito cada uma das
frases que ouço aos outros. E, por incrível que pareça, até já me apanhei a pensar
"Quem me dera ser mais velha!". Na verdade, nunca me quis imaginar na reforma,
como muitos destes dedicados professores também não. Mas entre a alma/saúde
mental e esta burocratização crescente da escola, então há que salvar o principal. Vejo
os meus colegas partirem ou preparem-se para a partida. Quando tal acontecia, em
tempos não muito remotos, todos se sentiam nostálgicos e a partida era discreta. Hoje
há efusivos parabéns a quem conseguiu e uma inveja (mal) calada de quem tem que
ficar.
Estas palavras são as lágrimas que não choro e que transcrevo para a solidão do papel
para que ajudem a fortalecer uma alma-professora que luta por si própria, pela sua
sobrevivência, e pela escola-alma com verdadeira alma, mesmo alma.
http://www.educare.pt/educare/Opiniao.Artigo.aspx?
contentid=4CA5C2DE5F3245AFE04400144F16FAAE&opsel=2&channelid
in educare

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